segunda-feira, 16 de março de 2009

AMENTAR OU EMENTAR AS ALMAS

Quaresma, tempo de abstinência, reflexão, penitência mas tempo também de recordar quem partiu.
Um pouco por todo o lado, homens, nalgumas regiões, mulheres, noutras e homens e mulheres, noutras tantas, juntavam-se no período quaresmal para, diariamente, cantarem e rezarem às almas.
De essência cristã, a amenta, ementa ou encomendação das almas era uma das tradições quaresmais mais respeitadas e acarinhadas pelo povo português.
As almas dos entes queridos, sujeitas às penas do purgatório, necessitavam das preces dos vivos para alcançarem a vida eterna. Quaresma fora, em condições climatéricas tantas vezes adversas, o grupo da ementa das almas ia para a rua cantar e rezar às almas, no sentido de que, quem, no quentinho dos seus lares o ouvia, se lhe juntasse nas preces pela salvação de parentes e amigos falecidos:
“Ó irmãos que estão na cama
nesse sono tão profundo,
lembrai-vos das vossas almas
que lá estão no outro mundo.”
P. N. A. M.
Pouco antes da meia-noite, um a um o grupo ia-se concentrando no adro da igreja. Ninguém falava; ninguém olhava para trás. O medo impedia-os de quebrar a tradição; as almas penadas, os fantasmas, as figuras mais ou menos grotescas e fantasmagóricas que povoam as noites e o imaginário de tantos, rondavam o lugar esperando um deslize, atacando os incautos. Grupo completo, tocava a campainha e iniciava-se o ritual. Todos se benziam e o cântico começava:
“Na hora de Deus começo,
Pai, Filho e Espírito Santo
Por ser o primeiro verso
Que neste auditório canto.”
P. N. A. M.
Seguiam-se sete poisos. O mesmo ritual. Durante quarenta dias ouvia-se por toda a aldeia o cântico arrepiante e lúgubre do amentar das almas. Em casa, tremendo de medo por sob as cobertas, as pessoas rezavam, fervorosamente por pai, mãe, filho ou marido já desaparecidos. Em Sábado Maior tudo terminava em grande festa de alegria e Ressurreição. Durante o dia preparavam-se coroas, desfolhavam-se flores que iriam embelezar cada um dos sete poisos no final de cada cântico. O grupo finalizava o ritual na capelinha da Senhora da Guia, no bairro do Cimo da Aldeia. Terminado o amentar, ainda em silêncio, o Zé Alho, o mais velho do grupo, dava o tom e todos cantavam um cântico final a Maria, pedindo protecção para as suas próprias almas:
“Nome de Maria,
Que tão lindo é
Salvai a minha alma
Que ela Vossa é.”

Quaresma, quarenta dias de jejum e abstinência que medeiam entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Páscoa, dia grande da festividade da Ressurreição de Cristo. Em termos bíblicos, o número quatro simboliza o universo material, as provações, dificuldades, sacrifícios, por que passa a Humanidade na sua passagem pelo mundo terreno.
Quaresma, quarenta dias de sacrifício, provação e penitência de Jesus no deserto.
Quaresma, quarenta dias de abstinência, reflexão e penitência dos crentes; quarenta dias de sacrifício e penitência pela salvação das almas; quarenta dias de sacrifício e penitência do grupo da amenta pela expiação das próprias falhas preparando, assim antecipadamente, a entrada no Céu quando a hora de cada um fosse chegando.

Maria Odete Madeira
Passos de Silgueiros, 2 de Março de 2009
(Chanceler-Mor da Confraria de Saberes e Sabores da Beira, “Grão Vasco”)

MARIA CARPUÇAS




A noite de quarta-feira, a quarta da Quaresma, era uma noite diferente. Era a noite da Serração da Velha.
Durante todo o longo período do tempo santo da Quaresma, o povo, temente a Deus e respeitador das tradições da sua religião, punha de parte as danças e folguedos. Trocava-os pelo recolhimento, pela ponderação.
Nestas sete semanas, a excepção era a quarta-feira do meio da Quaresma. Nessa noite, rapazes e homens podiam, à vontade, dar livre expressão ao seu desejo de folgar, bloqueado desde Quarta-Feira de Cinzas; apenas durante uma noite, mas sempre bem aproveitada.
Reunidos em grupos de duas dezenas ou mesmo mais, chefiados pelo testamenteiro, vulgarmente chamado pregador, faziam-se acompanhar de grandes chocalhos e lataria, tudo quanto pudesse fazer barulho. E também do cortiço e do serrote; para serrar com grande e característico ruído — para serrar a velha.
A escolhida, como se depreende, era sempre senhora idosa. Das mais velhas da aldeia.
E para ser uma boa escolha, tinha de ser alguém que tivesse filhos — para que os serradores pudessem ser considerados seus netos — mas que, acima de tudo, se revelasse o mais possível avessa à função.
As que, logo de início, reagiam com palavras amigas, convidando: — Vinde, meus netinhos, vinde beber qualquer coisa, que deveis estar cansados — eram de imediato deixadas em sossego, por demasiado pacíficas e, por isso, sem interesse.
Boa para a luta desejada era, todos os anos, a ti Maria Carpuças. Primeiro do postigo, depois do patamar do seu cardenho, respondia ao desafio com impropérios, com insultos, com palavrões.
De baixo, a malta, chefiada por ti Diamantino, começava:
— Chorai, netinhos chorai, que a vossa avó vai morrer. E toda a gente respondia ao convite, em altos gritos, "chorando" a perda iminente daquela "avó".
E chocalhava. E chocalhava, num barulho infernal.
Era o início de uma batalha que só vinha a terminar quando entendiam que a velha estava devidamente serrada. E sempre tendo em conta as suas reacções mais ou menos violentas.
O testamenteiro continuava:
— Ó velha, aqui estão os teus queridos netos. Sabemos que vais morrer. Antes, porém, precisas de fazer o teu testamento, das palhas que leva o vento. Diz-nos, pois, as tuas deixas:
— A quem deixas a tua galinha? — À minha melhor vizinha.
— E o teu rosário de agonia? — Ao padre da freguesia.
— E a quem deixas a palha do teu colchão? — Essa é para o ninho do meu cão.
— E para quem fica o teu tonel? — É para o meu filho Manuel.
Sempre rimando, o testamenteiro lá dava a volta a todos os haveres. Fazendo as perguntas e dando as respostas, conseguia verdadeira crítica social, pelas pessoas que associava aos objectos a doar.
Chorai netinhos, chorai,
Que a nossa avó vai morrer;
Lágrimas de quatro a quatro
Não a deixeis esquecer.

De novo o choro, os gritos, as lamentações. E os chocalhos, o barulho infernal.
Estava terminado o testamento e a chegar ao fim a serração daquela velha, a ti Maria Carpuças. Que, entretanto, estava completamente rouca de tanto berrar, de tanto barafustar, de tanto insultar. E cansada também de arremessar sobre o inimigo tudo quanto pudera armazenar para o efeito: água, pedras, cavacas, líquidos orgânicos.
O testamenteiro, antes de terminar, ameaçava ainda:
— Ó velha, se desta escapares, fica já combinado que, para o ano, cá voltaremos para te serrar. E para isso, fica também já nomeado o José Silva de Vila Nova, que tem um irmão que te espeta e outro que te leva à cova.
Era o fim.
A malta partia, finalmente, entre grande chocalhada e vozearia.
Mais adiante, em absoluto silêncio, marchava a caminho da próxima vítima.

António Lopes Pires